A Emenda Constitucional nº 132 de 20/12/2023 (EC 132/23) e a Lei Complementar nº 214, de 16/01/2025 (LC 214/25) redesenharam o sistema tributário brasileiro ao instituírem a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS).
Por outro lado, o artigo 124, da EC 132/23 prevê que até 2033 serão extintos, paulatinamente, o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS). O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) será redesenhado, grosso modo, com alíquota zero a partir de 2027 [1], com exceção aos produtos industrializados com incentivos na Zona Franca de Manaus (ZFM).
Em linhas gerais, o objetivo central da reforma tributária sempre foi o de simplificar o sistema tributário nacional, especialmente sobre o consumo, unificando normas e substituindo tributos de base fragmentada.
Ocorre que um ponto de enorme relevância ficou em aberto, qual seja, a ausência de previsão expressa quanto à exclusão da CBS e do IBS das bases de cálculo do IPI, ICMS e do ISS.
O receio dos contribuintes se justifica, entre outros argumentos, pois a Proposta de Emenda à Constituição n° 45, de 2019 [2] (PEC 45/19) previa expressamente a exclusão da CBS e do IBS das bases de cálculo do ICMS e do ISS durante o período de transição da reforma tributária. No entanto, essa exclusão foi suprimida na redação final da EC 132/23, como se pode constatar ao comparar os textos das duas normas, conforme demonstrado a seguir:
“Contribuição sobre Bens e Serviços
PEC 45/19 – Art. 195 (…) § 17. A contribuição prevista no inciso V do caput não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 155, II, 156, III, 156-A e 195, I, “b”, e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239.
EC 132/23 – Art. 195 (…) § 17. A contribuição prevista no inciso V do caput não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 156-A e 195, I, “b”, e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239.
Imposto sobre Bens e Serviços
PEC 45/19 – Art. 156-A (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, 155, II, 156, III, e 195, V;
EC 132/23 – Art. 156-A (…) IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nos arts. 153, VIII, e 195, I, “b”, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239;”
Em contrapartida, a redação aprovada na EC 132/23 foi clara quanto à exclusão da CBS e do IBS das suas próprias bases (artigo 156-A, § 1º, IX), Imposto Seletivo, do PIS, da Cofins e do PIS/Cofins-Importação (artigo 195, V, § 17 que faz remissão aos tributos previstos nos artigos 153, VIII, 156-A e 195, I, “b”, e IV, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o artigo 239).
Desde a publicação da EC 132/23, sempre houve consenso a respeito da necessidade de uma norma legal de exclusão da CBS e do IBS das bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS ou, ao menos, pronunciamento oficial dos entes federativos — o que nunca ocorreu.
Desde então, a desconfiança dos contribuintes só aumentou e ganhou mais corpo, especialmente porque recentemente, diversos meios de comunicação — inclusive veículos vinculados a sindicatos de fiscais estaduais — noticiaram que a União, os estados e os municípios, de fato, têm a intenção de incluir a CBS e o IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS [3].
A fim de enfrentar essa lacuna normativa, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 16 de 06/2/2025 (PLP 16/25) que prevê, expressamente, a exclusão da CBS e do IBS das bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS, por meio da alteração da Lei Complementar n° 87, de 13/9/1996 (Lei 87/96 ou Lei Kandir) e da LC 214/25, porém, até a presente data, o texto não foi aprovado, o que mantém os contribuintes em situação de incerteza.
Esse vácuo normativo gera insegurança jurídica, especialmente diante da proximidade do início do período de transição da reforma tributária e do silêncio dos componentes da federação envolvidos. Tal omissão, aliás, contraria de forma muito evidente os princípios da transparência e da simplicidade que foram incluídos na EC 132/23, os quais devem nortear o Sistema Tributário Nacional, nos termos do artigo 145, § 3º [4], da Constituição.
Diante desse cenário, isto é, de omissão legislativa e incerteza jurídica, é fundamental considerar as consequências práticas da eventual inclusão da CBS e do IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS. Caso os entes federativos optem por essa interpretação, há robustos fundamentos jurídicos que sustentam a ilegalidade e a inconstitucionalidade da medida, os quais serão detidamente expostos a seguir.
Da evidente violação ao princípio da legalidade tributária
O princípio da legalidade, previsto no artigo 150, inciso I [5], da Constituição estabelece que não se pode exigir ou aumentar tributo sem lei que o institua.
Trata-se de uma garantia essencial do Estado de Direito, que veda a tributação com base em presunções ou em interpretações extensivas sem respaldo legal expresso — exatamente o que ocorre no presente caso, em que não há previsão normativa clara para determinar que a CBS e o IBS devam compor as bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS.
No caso da inclusão da CBS e do IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS, verifica-se afronta direta a esse princípio, uma vez que não há dispositivo legal que autorize a sua incorporação. A ausência de previsão normativa específica impede a presunção de que tais valores possam compor a base de cálculo, pois equivaleria a instituir nova hipótese de incidência tributária sem lei.
Portanto, em homenagem ao princípio da legalidade tributária, não se pode permitir que o silêncio normativo possa ser interpretado como autorização para inserção da CBS e do IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS.
Da inobservância da jurisprudência consolidada pelo STF no Julgamento do Tema 69: impossibilidade de considerar tributo como receita própria do contribuinte
Em meados de março de 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706 (RE nº 574.706), com repercussão geral (Tema 69), o Supremo Tribunal Federal sedimentou entendimento de que o ICMS não deve ser incluído nas bases de cálculo do PIS e da Cofins oportunidade em que foi fixada a seguinte tese:
“O ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins, por não representar faturamento ou receita própria do contribuinte, mas sim valor a ser repassado ao Estado.”
O entendimento empregado pelo STF foi claro no sentido de que tributo não se confunde com riqueza própria do contribuinte, mas constitui obrigação de repasse, sendo juridicamente impossível qualificá-lo como receita tributável.
Em outras palavras, a rigor do que foi fixado pelo STF no julgamento do Tema 69, o tributo não pode ser considerado receita própria do contribuinte, pois a sua natureza é meramente transitória. Ao ingressar no caixa da empresa, o valor do tributo já nasce com destinação vinculada ao Estado, não podendo se confundir com riqueza nova ou disponibilidade econômica.
A conceituação de receita própria, na ordem constitucional, pressupõe incremento patrimonial que se incorpora ao patrimônio do contribuinte, o que não ocorre com os montantes arrecadados a título de tributos, exatamente como no caso da CBS e IBS, por serem apenas valores que serão repassados ao Fisco.
Além disso, configura ofensa ao princípio da vedação ao confisco, pois cria uma tributação em cascata que distorce a apuração do efetivo resultado econômico da atividade empresarial. O Supremo, ao firmar a tese do Tema 69, deu concretude a esses princípios ao decidir que não se pode exigir tributo sobre aquilo que não é riqueza, racional que se amolda perfeitamente à discussão a respeito da necessidade de não se permitir a inclusão da CBS e IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS.
Desse modo, permanece firme a diretriz de que a base de cálculo de qualquer exação deve refletir apenas riqueza própria, e não valores de terceiros (entre eles a CBS e o IBS), assegurando a coesão do sistema e respeito à Constituição, razão pela qual, parece-nos que soa incoerente sustentar que a CBS e IBS possam ser incorporados às bases de cálculo do IPI, ICMS ou do ISS, a rigor das razões de decidir constantes no Tema 69 do STF.
Introdução do split payment na reforma tributária: reforço argumentativo de ausência de ingresso de receita própria na esfera financeira do contribuinte
O split payment previsto na reforma tributária é um modelo de recolhimento do tributo em que, no momento da compra e venda, parte do valor referente à CBS e ao IBS será automaticamente separado e transferido diretamente ao Fisco, sem passar pelo caixa do contribuinte.
Exemplificando: Do valor total pago pelo adquirente na operação, a parcela correspondente aos tributos (CBS e IBS) será automaticamente segregada no momento da transação. Esses valores não transitarão pelo caixa do contribuinte (vendedor), sendo direcionado aos entes arrecadadores no momento do pagamento eletrônico — a CBS à Receita Federal do Brasil (RFB) e o IBS ao Comitê Gestor do IBS (CGIBS).
Essa sistemática de recolhimento da CBS e IBS por split payment está prevista, de acordo com informações da RFB, a partir de 2027[6] e objetiva aumentar a transparência, reduzir a litigiosidade e mitigar a inadimplência, uma vez que elimina a etapa intermediária de retenção do tributo pelo contribuinte.
O mecanismo de split payment previsto na reforma tributária reforça significativamente o argumento de que a CBS e o IBS não devem ser incluídos nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS, pois com muito mais propriedade, não pode ser cogitado que tais tributos possam ser considerados receita própria do contribuinte, pelo simples argumento de que esses valores (CBS e o IBS) sequer circulam pelo caixa do contribuinte.
A propósito, no julgamento do Tema 69 pelo STF assentou-se a compreensão de que receita é apenas aquilo que efetivamente se incorpora ao patrimônio do contribuinte, gerando disponibilidade econômica. Ao aplicar esse raciocínio às operações envolvendo split payment, a conclusão se mostra ainda mais robusta no sentido de que não há trânsito formal dos valores pelo caixa da empresa.
Se no julgamento do Tema 69 havia argumentação de que o ICMS era apenas um ingresso transitório no caixa do contribuinte, para a CBS e o IBS quitados na modalidade de split payment, indubitavelmente, não figuram como ingresso no caixa, haja vista que são imediatamente remetidos ao Fisco no momento do pagamento (RFB e CGIBS).
Do ponto de vista contábil, essa distinção torna-se ainda mais nítida. A empresa passa a reconhecer apenas o valor líquido da operação como sua receita bruta, já deduzidos os tributos que foram segregados pelo sistema bancário. Essa separação evita distorções na apuração de resultados, garantindo maior fidedignidade às demonstrações contábeis e reforçando a harmonia entre a prática contábil e a interpretação constitucional firmada pelo STF.
Com a segregação automática do preço do bem/serviço, da CBS e do IBS, não há espaço para interpretações ambíguas a respeito da inclusão ou não nas bases de cálculo, pois nos parece que se consolida o entendimento de que os valores destinados ao Fisco jamais se confundem com receita própria do contribuinte.
Por todos esses argumentos, se já era inconcebível considerar tributo como receita quando havia trânsito formal dos valores pelo caixa do contribuinte, com muito mais razão essa conclusão se impõe agora, quando da operacionalização do recolhimento da CBS e do IBS via split payment, que sequer chega a integrar a esfera patrimonial do contribuinte.
Das considerações finais
Se a intenção de inclusão da CBS e IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS for efetivada, como tudo leva a crer que sim, tal prática afrontará não apenas a estrita legalidade, mas também o respeito aos princípios da capacidade contributiva, à própria noção de justiça fiscal e da simplicidade, esse último, pilar básico da reforma tributária.
Sabe-se que a reforma tributária foi concebida sob a promessa de simplificação e redução do contencioso, no entanto, a ausência de clareza normativa quanto à inclusão ou não da CBS e do IBS nas bases do IPI, ICMS e do ISS acaba por incorrer no efeito contrário, isto é, um ambiente de incerteza e inevitável aumento de litigiosidade.
Diante desse cenário parece-nos que a solução passará por dois caminhos, a saber: (1) a atuação célere do legislador na aprovação de regras claras que assegurem a exclusão dos novos tributos das bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS (v.g, PLP 16/25) ou (2) decisão judicial para afastar qualquer pretensão de inclusão da CBS e do IBS nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS para o fim de preservar a coerência com a jurisprudência consolidada do STF no julgamento do Tema 69.
Isso tudo porque tributar valores a título de CBS e IBS durante o período de transição da reforma tributária, por não configurarem efetiva receita, mas simples trânsito contábil, significa distorcer a essência do sistema tributário e impor ao contribuinte encargos ilegítimos. Todos esses argumentos ganham ainda mais robustez após a vigência do recolhimento da CBS e IBS via split payment pelo fato de que tais valores não transitarão no caixa do contribuinte.
Pode-se concluir assim que qualquer tentativa de incluir nas bases de cálculo do IPI, ICMS e ISS o montante da CBS e do IBS durante esse processo transitório, sobretudo para os tributos que serão extintos (ICMS e ISS), bem como no caso do IPI que será recolhido de forma residual compromete a expectativa de estabilidade criada com a implementação da reforma tributária e gera insegurança quanto ao seu alcance.
[1] EC 132/23 – Art. 126. A partir de 2027: (…) III – o imposto previsto no art. 153, IV, da Constituição Federal: a) terá suas alíquotas reduzidas a zero, exceto em relação aos produtos que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus, conforme critérios estabelecidos em lei complementar; e
[2] De acordo com o texto aprovado em 3/8/2023 na Câmara dos Deputados para envio ao Senado Federal.
[3] Aqui.
[4] CF. Art. 145. (…) § 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.
[5] CF. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
[6] Aqui.
CONJUR - Dr. Carlos Gama
DIREITO TRIBUTÁRIO - KRAS BORGES E DUARTE ADVOGADOS - KRAS BORGES & DUARTE ADVOGADOS