O Ministério Público do Rio Grande do Sul teve uma atuação contraditória na investigação sobre os indícios de falhas da prefeitura na manutenção do Sistema de Proteção Contra Cheias (SPCC). Enquanto uma ação civil pública busca responsabilizar a prefeitura pelos danos da enchente, requerendo indenização por danos morais coletivos e danos materiais e morais individuais homogêneos, outro inquérito civil dentro do MP chegou à conclusão contrária, de que a prefeitura não teve culpa no desastre. Essa segunda investigação foi arquivada.
Em entrevista à Matinal, o juiz federal Gabriel Wedy, professor de direito ambiental e climático na Escola de Direito e no Programa de Pós-Graduação da Unisinos, afirmou que entes estatais, sejam eles municípios, estados ou a União, podem ser responsabilizados judicialmente tanto por ações quanto por omissões em casos de litigância climática. Ele explica que o MP tem o dever constitucional de proteger o meio ambiente e o clima, mas que cada promotor conta com liberdade de atuação. “[O MP] possui independência funcional e administrativa para exercer este dever constitucional como melhor lhe aprouver. No caso, provavelmente, o parquet [MP] deverá continuar atuando em outras frentes para a tutela do meio ambiente, do sistema climático e, em especial, das populações atingidas”, comentou.
Sem tratar especificamente a apuração do MP com relação ao município, o magistrado afirmou ver uma tendência de o poder judiciário ir “direto ao ponto” neste tipo de processo ao redor do mundo, o que nota ser uma tendência para o Brasil. “Existem vários casos de litigância climática buscando a responsabilização para a reparação de danos dos grandes grupos transnacionais produtores de petróleo e do carvão junto ao Poder Judiciário das nações e, igualmente, buscando responsabilizar empresas e nações por violação de direitos humanos em Cortes Internacionais por estarem se omitindo nos seus deveres de tutela do clima com base no direito internacional”, explicou.
No Brasil, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça abre a possibilidade de responsabilização do executivo municipal por eventuais falhas de proteção à sua população. “Em tese, todo e qualquer município pode ser responsabilizado civilmente por ausência da adoção dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção em casos de catástrofes ambientais e climáticas”, comentou.
No início do mês, o MP arquivou um inquérito aberto quando a água do Guaíba ainda inundava Porto Alegre na enchente do ano passado. O objetivo era apurar a responsabilidade da prefeitura na manutenção do sistema de proteção contra enchentes. Prevaleceu o entendimento de que o evento foi algo “de força maior” e de que o sistema – construído na década de 1970 – não foi suficiente para lidar com o volume de água, além de jamais ter sido efetivamente testado ao longo de sua história. Nesta terça, o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) protocolou um requerimento no MP pedindo a reabertura do inquérito.
“Caráter estratégico”
Em um momento de ascensão dos eventos climáticos extremos, o magistrado entende que processos de litigância climática, para além da responsabilização, podem ter um “caráter estratégico” quanto ao seu mérito, repercussão e desdobramento. “Visam conscientizar entes públicos e privados que não devem poluir, não devem emitir gases de efeito estufa e devem investir na infraestrutura das cidades para proteger as populações mais vulneráveis. Outros litígios climáticos são estruturantes, visam engajar toda sociedade, entes públicos e privados a adotarem medidas anti-catástrofe e anti-desastre a serem adotadas de modo dialogado”, afirmou.
No caso do Rio Grande do Sul, ele acredita que processos do tipo tendem a ser ainda mais frequentes nos tribunais: “Os gaúchos ao longo de sua história são caracterizados por serem litigantes, o Conselho Nacional de Justiça já demonstrou isso em mais de um relatório desde a sua criação no ano de 2005. A tendência é que, com o aumento das temperaturas e da ocorrência mais frequente de eventos climáticos extremos, os litígios climáticos no RS vão se multiplicar”.
Apesar do arquivamento do processo, a ação civil pública movida pelo MP pedindo indenização às vítimas da enchente permanece tramitando. Outro inquérito, que apurou a ação da prefeitura de Porto Alegre com relação à preservação do arquivo urbanístico da cidade, estabeleceu um Termo de Ajustamento de Conduta do município, celebrado no início do mês.
Deputado atua por reabertura de inquérito
O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) protocolou junto ao Ministério Público na última quarta-feira uma peça de 55 páginas para embasar seu pedido de reabertura do inquérito que apurava as eventuais falhas da prefeitura de Porto Alegre com relação ao sistema de contenção de enchentes. O documento será analisado pelo Conselho Superior do MP e não há prazo para esta avaliação.
O recurso de Gomes pede a reabertura para três ações: apurar as condutas individuais na perspectiva da Lei de Improbidade Administrativa; fiscalização ativa do MP com relação a projetos e obras de requalificação do sistema de proteção; e uma análise do inquérito por outras promotorias especializadas do MP – ele cita a do Meio Ambiente, Defesa do Patrimônio Público e a de Direitos Humanos. No MP, o arquivamento foi promovido pela Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre.
Um dos pontos do recurso cita um estudo do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (IPH), que aponta que as falhas no sistema de proteção não eram estruturais, “mas da ausência de manutenção ou inobservância de exigências técnicas”. Em maio do ano passado, diferentes reportagens da Matinal apontaram a falha de manutenção como causa da inundação em Porto Alegre.
“Carece de bom senso imputar às supostas falhas estruturais das obras do extinto DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento, autarquia federal extinta em 1990, que construiu o sistema) a ausência de responsabilidade do Município e dos atuais gestores, quando se tem diversos estudos de conhecimento do Poder Público municipal que indicam a vulnerabilidade de determinadas localidades mesmo com a existência do SPCC”, argumenta o recurso.
Projeto por Emergência Climática permanente
Em outra esfera, na Assembleia, Gomes tenta aprovar projeto que declara estado de emergência climática permanente no Rio Grande do Sul. Protocolado em 2023, ainda antes da enchente, o texto visa embasar a criação de planos de resposta às emergências. Entretanto, não há previsão de quando a matéria vá à votação no plenário da Casa. “Não houve uma sensibilização significativa na casa para garantirmos a sua aprovação, além disso, o diálogo com a Casa Civil tem sido difícil”, comentou o deputado.
MATINAL NEWS - TIAGO MEDINA
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